A poderosa oração de São Tomás More

Roger Salgado
3 min readAug 26, 2024

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Já senti mais emoção em ver o mar. Esse desamor confirma o sentimento definitivo que Pessoa sentenciou – “se a conclusão é morrer”, de fato ele está acabado desde que o vi pela primeira vez. O mar que outrora me arrebatou podia ser qualquer um: aquele verde deslumbrante que enche os olhos, o azul-turquesa que se funde com o céu ao longe ou ainda aquele de águas indefinidas, sujas de areia. Naqueles dias ensolarados este mar tinha todo o tempo do mundo para gerar novas ondas a cada momento e suas vias subaquáticas estavam livres de micropartículas de plástico e lixo humano. As luzes do sol que lambiam suas costas eram amplamente toleradas e formavam uma sensação agradável que não queimava de uma vez. Ao contrário, amorenava, tornando as águas mornas e relaxantes. Se por um lado era um mar ainda tímido, por outro, golfava suas ondas gigantes, que se formavam depois de uma bebedeira homérica e ressacavam pela manhã faminta. Já agora, neste entardecer, ele exibe uma cara ranzinza e sua expressão de mau humor exala uma maresia fétida. Tenho um dó do mar! Ele anda de lado, tem o olhar distante e parece muito depressivo. Deve ser por todos os desaforos que já escutou ou por tudo que teve de aguentar em sua penosa lida diária de arrebentar as rochas das falésias, refinar a areia incalculável ou ainda alimentar seus seres naturais e esses outros, vestidos de roupas, que o exploram e maltratam. Hoje revejo o mar. À medida que o ocaso do sol se revela, parece mais cansado do que nunca. Suas ondas, antes vigorosas e altivas, agora são apenas sussurros na areia. Ele se assemelha a um jovem que envelheceu prematuramente, carregando o peso de uma vida inteira em suas profundezas.

Lembro-me de quando o mar era como um adolescente rebelde. Ele desafiava as rochas criando espumas brancas que dançavam ao vento. As tempestades o excitavam e rugia com fúria, desafiando o céu. Naquela época o mar era cheio de paixão e energia. Agora suas águas são calmas, quase melancólicas. Ele se arrasta lentamente; como um idoso que perdeu a vitalidade. As marcas do tempo estão gravadas em suas marolas, como rugas profundas em um rosto envelhecido. Suas águas são quase doces e o calor do sol não é mais um abraço acolhedor, mas uma ameaça à sua fragilidade.

Está na cara que enfrentou desilusões e tristezas. Mergulhou na dor. Testemunhou o desaparecimento dos seres que ama e dos tesouros e segredos guardados à sete chaves. E então, por um descuido, deixou que fossem descobertas as coisas mais íntimas e proibidas de seu hábitat interior. Talvez o mar tenha aprendido a aceitar sua condição. Ele não luta mais para gerar marés ou tubos magníficos, nem arrebentação e tampouco o preamar; somente flui com resignação.

Enquanto caminho por sua praia o observo com compaixão e morro de tristeza. Dou uma benzida em volta de mim estalando os dedos e, rezo a Deus em meu favor para que me livre de ficar como este degradante oceano – cansado, desiludido e sem forças para lutar.

“Senhor, dai-me uma boa digestão, mas também algo para digerir.

Dai-me a saúde do corpo, mas também o bom humor, necessário para mantê-la.

Dai-me, Senhor, uma alma simples, que saiba aproveitar tudo o que é bom e que não se assuste quando o mal chegar, e sim que encontre a maneira de colocar as coisas no lugar.

Dai-me uma alma que não conheça o tédio nem os resmungos, suspiros e lamentos, e não permitais que eu me atormente demais com essa coisa incômoda chamada “eu”.

Dai-me, Senhor, senso de humor!

Amém.”

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