Pobre Anton

Roger Salgado
15 min readApr 2, 2023

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Dall-E-2 by Roger I

Intrincados sentimentos invadem minh’ alma sempre que retorno à estas plagas. Em meu cérebro forma-se um distorcido vetor gradiente das coisas que aconteceram; escapa-me o controle das emoções e meu corpo padece; mas em contraponto, parece que exorcizo qualquer tipo de culpa. Este embate de sentimentos acalenta meu coração e ajuda-me a refletir sobre minhas transformações. Tal como o homem de Heráclito, não sou mais o mesmo, tampouco a cachoeira das Antas, que é um poema vivo, uma canção sem fim que ecoa pelo cerrado. O barulho da queda rebentando nas pedras é música que alimenta a gênese da vida; suas águas cristalinas dançam em uma coreografia que só a natureza pode criar. A cachoeira das Antas é um presente para os sentidos. O despencar das águas forma um véu etéreo, uma cortina de cristal que parece flutuar no ar. O sol que brilha sobre ela, transforma suas gotas em diamantes reluzentes, revelando um arco-íris de espectro contínuo, denunciando seu esplendor.

A estrada que me conduzia também é outra. Por agora é uma rodovia moderna, asfaltada, sinalizada e com as exigidas obras de arte. Naquele tempo, para vir da capital, tínhamos que esperar a jardineira da Viação Rouxinol, destemida e empoada, mesmo afrontando e relatando prejuízos contábeis, lotar suas cadeiras. Era uma viagem de muitas horas, sacolejando pela estrada de terra vermelha, fininha, passando por grotas e pontes de madeira; tão abandonada, tão esquecida! Era possível vir de trem de ferro, mas demandava mais tempo e não tinha o gosto de viajar de ônibus. Embarcava nas primeiras cadeiras; era uma excelente forma de acompanhar, de melhor sorte, tudo que acontecia pelo caminho. O motor posicionado à frente era barulhento e tremulante. Nada importava se, às vezes, as coisas não davam certo e ficávamos horas na beirada da estrada esperando por socorro para consertar ou desatolar aquele ônibus com nariz de caminhão. Ainda hoje consigo me lembrar do cheiro de óleo diesel sendo queimado, do aviso que ficava exposto logo acima do para-brisa dizendo que era proibido fumar cachimbo, charuto ou cigarro de palha e da música fúnebre Il Silenzio do Nini Rosso, que o motorista escutava em uma chiante estação de rádio. Era um passado fluido. Contudo não era um passado morto, era um tempo que vicejava.

À medida que nos aproximávamos do fim da linha as paradas eram menos frequentes e o carro ficava quase vazio. Disformes mourões de madeira passavam apressados e as plantações de café formavam corredores perpendiculares em ondas de Fibonacci. Desembarcava no penúltimo ponto; havia uma venda, um seco e molhados, como se dizia; uma mistura de bar, armazém e ponto de ônibus. A construção era de madeira e tinha as paredes embotadas pelo tempo. No estio, o calor intenso que vem do sol ardente era insuportável, mas, o armazém era fresco e aconchegante, oferecendo uma pausa para aqueles que perambulavam. O piso de madeira rangente era como uma sinfonia de sons antigos; cada passo ecoando pelos cantos era como se contasse histórias de viajantes que vieram antes. A luz do sol, que entrava pelas janelas desgastadas, parecia dançar no chão, criando um mosaico mágico de luzes e sombras que se moviam com o passar das horas. O cheiro de madeira e poeira se misturavam-se no ar, criando uma sensação de nostalgia e saudade. Mas, em contraste ao passado bem passado, um sinal de modernidade havia chegado. Sim, havia luz elétrica a tremeluzir. Havia duas lâmpadas, de um filamento amarelado e oscilante; uma sobre o velho balcão de madeira e a outra sob um torneado prato de metal esverdeado, fixado em forma de L na parede externa, suficiente para iluminar em redor, quando a noite lançava suas trevas.

A viagem de hoje, porém, foi rápida e muito aprazível; fui trazido velozmente pelo meu carro de incontáveis cavalos por esta estrada de rodagem, que eu mesmo ajudei a projetar e construir. No mesmo lugar do ponto de ônibus e do armazém de outrora, há agora um posto de gasolina moderno e um belo restaurante. No entanto, o mirante fora preservado.

Para todos os lados que olho, vejo um mar de montanhas. São como ondas estacionárias. Elas vão se enroscando umas às outras numa eterna briga de irmãs. Quanto mais perto ficam mais o verde escuro me assombra e na distância o azul celeste cai sobre elas e lhes empresta sua cor e na firmeza da vista finalmente se fundem no horizonte ancho, que não se acaba e não tem pressa. Incontáveis e macambúzios coqueiros parecem esperar por ordens que nunca chegam. Do mirante é possível ver uma cidade de maior monta chamada Samburá; ela tem como ápice uma imponente igreja. Mais a oeste revela-se um vilarejo chamado Antas, cortado pelo rio de mesmo nome que abriga a majestosa cachoeira. É tudo muito arrebatador! Imagem que não cansa a vista. A contemplação, de tão exuberante paisagem, sempre traz-me de volta a história de Anton; pobre Anton! e sua bela Liza! Foi nesse dramático cenário o caso de amor que se passou entre eles, e é envolto em ondas de emoção que o passo a narrar:

Uma chuva fina e renitente açoitava as folhas da mangueira que assombrava o fundo do quintal da casa de Anton, retirado em um pequeno sítio nos arredores de Antas. A água empapava o chão mole, como terra de cemitério. É um dia sombrio, mas que mudará sua vida para sempre. Anton vivia uma vida simplória trabalhando de motorista de caminhão para a prefeitura de Samburá. Era querido por toda a gente. Nas horas vagas ajudava todos que pediam uma mudança de casa ou alguma coisa de levar e buscar. Como sabia manejar o trator ajudava também os pequenos fazendeiros. Morava com seu paizinho. A luta de ambos no sustento da vida havia se transformado com a ausência da mãe, que teve uma morte repentina enquanto almoçavam. Com menos duas mãos, só sobrou aos dois a lida no campo, da casa, o sustento e o porvir. A mãe de Anton em muito lembrava uma mãe judia. Ao chegar à casa, requeria-lhe o banho, o jantar e depois obrigava-o a enfiar a cara nos livros. Dizia que o queria “alguém” na vida. Agora estava órfão. Ela não pôde ficar, fora chamada por Deus. Anton tinha ódio de Deus. Por que Deus buscava as mães? Passou a nutrir todo seu amor pelo paizinho. Paizinho que amanheceu doente, precisando de algum alívio. Anton foi até a farmácia de Samburá a fim de ver com o farmacêutico o aviamento de um xarope.

Oh destino cruel! Por que enviastes Anton a Samburá neste dia? Quis pregar-lhe uma peça em nome de que?

Saindo da farmácia, seus olhos avistaram uma linda moça, que vinha em sua direção. Ela se movia com graça, como se flutuasse em vez de caminhar, seus cabelos dançavam por baixo da sombrinha colorida, como se tivessem vida própria. Era como uma obra de arte viva, com cada traço e curva perfeitamente esculpidos. Aproximou-se e disse:

— Bom homem. Perguntei à cidade toda quem eu poderia contratar para uma entrega de madeira na minha sede. Você foi a referência. Quanto custa esta empreitada?

— São duzentos cruzeiros.

— Pagar-te-ei mil cruzeiros.

— Não posso aceitar de jeito nenhum bondosa senhora. Não é o preço justo. — Respondeu Anton com seu jeito simples e direto de falar, sem enrolações ou falsidades.

Por alguns instantes Anton atreveu-se a olhar a face e os olhos de Liza. Jamais vira tamanho encanto. Era uma mulher loira, de cabelos longos e sedosos que ondulavam e emolduravam eu rosto angelical. Seus olhos eram grandes e verdes como esmeraldas, brilhando intensamente em seu rosto simétrico. Seu nariz era delicado, os lábios cheios e rosados convidavam para um beijo. Sua pele era clara como a porcelana, suave e aveludada ao toque. Tinha uma elegância natural, uma postura ereta que indicava autoconfiança em si mesma e em sua beleza. Seu sorriso era contagiante, sua risada gostosa e suave e sua voz era doce e musical como uma canção de ninar. Ela parecia ter saído de algum livro; uma imagem perfeita que não poderia ser real. Mas era real e estava ali parada bem diante de Anton. Era de uma beleza portentosa, mas também, tinha uma aura especial, um brilho que emanava de seu interior, fazendo-a ainda mais desejável. O coração de Anton descompensou-se, suas pernas bambearam. Sentiu o sangue afluir ao corpo todo. O que estaria acontecendo com Anton? Até as insignificantes pedras soltas da rua saberiam responder. Combinado o negócio, pôs-se a carregar o caminhão com a ajuda de outros homens. A fazenda de Liza, caridosa e incauta, ficava a umas duas léguas de Samburá. Liza saiu à frente com seu jipe e Anton seguiu logo atrás sacolejando o caminhão. O pai de Liza já aguardava; atolado na porteira.

— Pai, este é Anton, o amável homem que me foi recomendado.

— Vamos baixar a carga. — Disse secamente o Sr. Tchekhov.

Como é um coração de um pai? O que havia percebido o russo em tão singela frase de Liza? Certamente haveria de antecipar as coisas com um certo engenheiro. E assim seria feito.

Mas, por hoje, Anton só conseguiu retornar à tardinha com o remédio, enchendo o coração de seu paizinho de angústia e preocupação e o seu de doce e perigoso amor.

Em Antas tudo dorme profundamente e quase sempre impede o dia de nascer. Quando ao fim ele consegue vencer a palermice do vilarejo, Anton já está de pé; percebe nas calças de dormir o resultado da polução noturna.

Liza, Liza, que fizestes com Anton? Porque acordastes um vulcão adormecido. Insensata Liza! Como se atreveu a olhar-lhe, sorrir-lhe e dirigir-lhe a palavra e mais, como ousou levar-lhe ao seu refúgio e lhe apresentar ao pai insensível?

Deitado sob o FêNêMê a ver o enguiço que o impedia de funcionar, Anton sentiu-se gente e mais, sonhou… sonhou com Liza a passear pelos campos, as mãos dadas, os pés no riacho fresco e numa sombra deitar sua boca na dela. Que beijo suave, a textura do toque seco levando a uma vertiginosa sensação de prazer!

Acorde deste sonho impossível Antônio Silva, não percebes sua insignificância?

Na noite em claro, revirando-se na cama, Liza tinha os pensamentos em Anton. Lembrou-se de seu corpo hirsuto marcado pelo sol, pelo vento e pela poeira, que davam a ele um aspecto rústico e robusto. De seus olhos castanhos e profundos, como se guardassem muitas histórias sobre a estrada. Da barba cerrada e do seu cabelo escuro e selvagem que parecia só ser domado pelo vento que sopra pela vastidão do campo, dando a ele um ar de homem da terra, que sabia viver em harmonia com a natureza. De como era forte, alto e musculoso, como se cada carga que carregasse fosse uma oportunidade de se tornar ainda mais forte. De sua pele áspera, moldada pela força e a coragem que somente os homens que lutam pela sobrevivência possuem.

A horas escorregaram apreensivas, e por mais impossível e perigoso que fosse, Liza apareceu repentinamente para Anton, ainda deitado sob o motor do caminhão.

— Pensei em ti por toda a noite meu bom homem. Sinto que preciso abrir a tampa dos meus anseios. Alguém me chamou e, foi você. Alguém me convidou, e foi você.

— Posso dizer o mesmo, minha senhora.

— Me chame de Liza, bondoso amigo.

Neste momento o motor roncou assustando a bela Liza. Anton ameaçou levantar-se.

— Fique aí querido amigo. Só queria vê-lo novamente. Eu volto.

Prometeu Liza e retirou-se apressadamente, deixando um odor de lavanda no ar, que atrevido, misturou-se aos cheiros de graxa e óleo.

O dia seguinte amanheceu neblinado, algodão com orvalho; parecia interminável. Já era tardinha e Anton, mesmo nas nuvens, emprestava o ouvido ao pai na conversa em volta do fogão à lenha a aquecer um bule e a serpentina para a água do banho. Alguém bateu à porta. Quem seria? Sem constrangimento, Liza adentrou, impetuosa, pela casa. Anton e o pai ficaram por algum momento congelados, não de frio, mas sim pela improvável aparição. Quando se recobraram, Anton disse:

— Meu pai, esta é Liza; lembra? Disse-te sobre ela.

— Bela Liza! Seja bem vinda. Anton não foi fiel à sua descrição. É um mau intérprete ocular. Um cego de nascença. Ainda bem que vejo você de olhos próprios. Que bom que são amigos, eu realmente não sei o que fiz pra merecer!

O café fumegou no bule e todos se aqueceram. Havia, por certo, um constrangimento no ar. Um sem jeito de entrosar uma conversa. Ficaram nas amenidades, quando por fim Liza se levantou, dando a entender sua saída.

- Filho, acompanhe Liza até seu automóvel.

Porque fizestes isto, pai de Anton? O senhor é um ser inconsequente. Não vedes que juntou à paixão a vontade de amar?

Depois de algumas horas, Anton regressou. Tentou disfarçar sua falta de jeito. Como os três macaquinhos, o pai ficou cego, mudo e surdo.

Liza passou a frequentar a casa de Anton. No início ainda entrava e cumprimentava o pai; com o tempo os dois já se recostavam em seu automóvel. Por vezes saiam a passear de caminhão pelas redondezas; a fazer planos. Passa tudo. Passam automóveis e jardineiras e carros de boi passam. Passam os retirantes e os errantes. Passa tudo, menos o amor de Antônio e Liza.

- Meu bom amigo. Minha maior alegria é saber que tenho você para amar. Tem como não sorrir quando me lembro de você? Por que eu me apaixonei tanto pelo teu sorriso? Dos relacionamentos que tive até agora, nenhum foi perfeito, mas quando encontrei você meu mundo ficou mais colorido! Vou assumir pro mundo inteiro que amo você. Enquanto houver amor, te amarei! Quando encontrei você, voltei a acreditar que é possível amar sem sofrer. Seu amor me leva ao paraíso. Quando eu menos esperava você chegou e o contato com seu corpo me modificou. Bem que o coração avisou: “leva uma blusa”, mas ignorei. Naquele dia choveu amor e eu me apaixonei. Como são lindas nossas juras e troca de confidencialidades!

Ah Anton! Como a vida lhe foi generosa. Vivia pelos cantos a resmungar. Tinha uma aura sorumbática e agora o amor! Amor que jamais sonhastes.

Um dia, porém, Liza chegou fora dos horários de costume, trazia um semblante pesado e taciturno:

— Bom homem. A vida não é justa. Meu coração sangra antecipado à minha partida.

— Não pode ser, minha amada senhora, razão da minha existência.

— É minha obrigação aprofundar o idioma de meus pais em terras distantes. E também conhecer meus parentes na espraiada Estepe. Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho.

Assim disse Liza ao seu amado amante. Funcionou o automóvel e saiu em disparada levantando a poeira.

Anton acordou da grande confusão que Liza causou em sua vida. Pensar nisto foi como ver sua própria queda. Liza foi sua queda! Sua partida foi sua queda!

E isso o dividiu, estando ou não em uma determinada situação de perjúrio. Mas em todos os casos, preferiu sair pra vida e nunca mais colocar seus pés onde seu coração não era bem-vindo.

“Você era minha canção mais bela, o sorriso mais apaixonante, o beijo mais doce que eu pude sonhar. Antes fosse só um sonho, porque hoje você se foi. Foi. Não é mais.”

Pior do que antes, habitava em Anton um homem solitário, esquecido em um vilarejo deprimente, fincado no interior de um continental país. Passava os dias a perambular pelas ruas vazias, observando as coisas antigas e as casas abandonadas, que marcavam o passar do tempo.

O tempo era vago, uma dor a carcomer-lhe sem descanso, o vazio como sua única companhia. Via o sol nascer e se pôr, observava as nuvens se movendo lentamente no céu, sentia o vento frio no inverno e o calor escaldante no verão.

Mas, apesar de seu estado de viuvez, Anton ainda encontrava beleza em cada coisa. Ele admirava a forma como a luz do sol iluminava as árvores no final da tarde, como as folhas mudavam de cor no outono e como a geada transformava o campo em um mundo branco e silencioso.

Havia as recordações de uma vida que se esvaiu. Lembrava-se da deslumbrante Liza, das pessoas que já havia passado por sua vida e dos sonhos que um dia tivera.

O tempo insistiu em continuar passando. A apatia e a astenia pesaram em seu semblante. Os dias de sofrimento destampou-lhe rugosas expressões, seu rosto perdera todo o viço; a lerdeza se instalou em seu corpo.

Volta Liza Tchekhov! Não vêdes no que se transforma seu homem. Que tipo de mulher és tú, que despreza os sentimentos e deixa agonizante o amor de sua vida? Aonde estás que não responde?

Anton continuou a caminhar, a entregar, a consertar e a todos dar em beneficência. Mas nunca mais esboçou um sorriso. Vagava pelas ruas de Samburá, observando as mudanças que o tempo trazia consigo. Novas construções surgiam, outras eram demolidas, pessoas chegavam e partiam, mas Anton permanecia ali, como uma testemunha silenciosa do passar das estações e das chagas em seu coração.

Em um dia ferial qualquer, de uma estação qualquer, Liza voltou. Por uma destas rasteiras do destino, Anton estava na praça central de Samburá; seu coração começou a bater novamente; era ela, sua amada, a mulher que o havia deixado para trás, mas que nunca esqueceu. Viu que ela caminhava em sua direção, o sol iluminava seu rosto, e ele pôde ver que o tempo não havia sido cruel com ela, estava ainda mais bela do que se lembrava.

Seus olhos se encontraram, e Anton sentiu novamente aquela emoção que há tanto tempo sentiu pela primeira vez. Seus braços se estenderam para abraçá-la, mas algo mudou quando ela chegou mais perto. Havia uma aliança em seu dedo, e ele descobrira que ela havia se casado. De repente, o mundo parou de girar, e tudo ao seu redor ficou em silêncio. Sentiu seu coração partir-se em mil pedaços, e uma dor aguda invadir seu peito. Liza tentou explicar, mas suas palavras foram em vão, ele não conseguia ouvi-la, não queria ouvi-la. A felicidade que ele sentiu ao vê-la novamente desapareceu instantaneamente. Todas as lembranças de seu amor foram substituídas pela tristeza e decepção. Anton se afastou de Liza, e em sua mente passou o filme do tempo em que estiveram juntos, do amor que haviam compartilhado. Agora, tudo isso parecia uma ilusão, um sonho que se dissipou. Ele se perguntou como havia sido capaz de acreditar que seu amor duraria para sempre e que ela voltaria por ele. Então, percebeu que tinha sido ingênuo, que a vida havia continuado para Liza. Olhou para ela mais uma vez, antes de correr, seus olhos se encheram de lágrimas, mas não permitiu que ela visse sua dor. Enxergou em Liza a traição e o horror pelo fato de que ela havia seguido, inexplicavelmente em frente, sem ele. Sabia que nunca seria capaz de amá-la novamente, mas ainda assim a amava, mesmo que agora fosse de uma maneira diferente, mas não menos intensa. Deixou sua amada desamparada no tempo e no espaço da praça sombria. Liza foi puxada pela mão de uma criança, que a chamava de mãe. Num último relance, Anton enxergou-se na fisionomia do menino. Nunca mais se veriam novamente.

Era uma tarde tranquila e estável, quando houve este trágico reencontro entre Liza e Anton em Samburá. O sol brilhava ardente em um céu azul transluzente sem nuvens. Anton dirigiu seu caminhão pela estrada sinuosa que levava à cachoeira das Antas. Quando a avistou pegou uma parte do aceiro lateral, afundou o pé no acelerador zunindo ao máximo o motor; propositalmente fez com que perdesse o controle da direção e rolasse na encosta íngreme; caiu na água profunda do rio; o ruído do impacto ecoou pelo cerrado. Não havia ninguém para acorrer. A correnteza forte levou o caminhão até a boca da cachoeira e então despencou, sendo arrebentado pelas pedras até chegar ao grande poço. O caminhão permaneceu submerso, como um túmulo de metal. Anton não morrera imediato. Enquanto a água entrava em seus pulmões, seus pensamentos voaram para longe, lembrando de tudo que deixaria para trás: Liza, seu paizinho, os sonhos. Tudo que agora parecia tão distante! Aos poucos seus olhos se fecharam. Sua respiração se tornou lenta. Ele soube que estava partindo, e que a cachoeira seria sua última morada. Adeus Liza!

A memória de Anton ficou gravada naquele lugar onde ele encontrou seu fim. E, a cachoeira agora tinha uma história e um novo nome, sendo chamada pelo povo de Cachoeira do Choro; de um homem que se foi por amor, amor doído, pranteado, mas que nunca será esquecido.

Por mais esplêndida que seja a aurora que ilumina nossas vidas, apesar de tudo, no final seremos encerrados num caixão e atirado numa fossa.

Inesperadamente Liza ficou muito doente. Nem mesmo o médico da capital chamado às pressas conseguiu identificar o mal que nela se apoderara. Não havia coisas concretas. Eu segurava sua mão, como se pudesse impedir que ela partisse. Sentia seu coração apertado, enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas. Ela estava firme em meus braços, mas também partindo aos poucos. E eu não sabia como suportar a dor da perda iminente. No quarto abafado, as paredes testemunhavam a cena triste e silenciosa, o relógio inclemente marcava as horas que se escoavam; mas de modo surpreendente Liza sentou-se na cama, olhou-me profundamente como nunca havia feito e teve tempo de contar-me esta secreta história.

Nunca mais me casei. Agora no ocaso da vida dispo-me de toda e qualquer mágoa. Consigo transmitir este caso de amor a seus netos. Não sinto mais vergonha. O breve amor de Anton e Liza era puro e sublime.

Pobre Anton, pobre Liza! Pobre de mim!

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Roger Salgado

Talvez um dia você morra. Por precaução leia antes disto.