Os passarinhos

Roger Salgado
7 min readJul 28, 2024

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A casa da minha prima Margarida era mágica. Mas a magia que lá havia não era destas de filmes ou de circo ou ainda de mirabolantes mágicos escapistas. O que havia de tão bom por lá eram os passarinhos. Toda manhã um coral de aves começava a cantar antes mesmo de o sol nascer. O canto dos passarinhos livres misturava-se com o dos passarinhos nas gaiolas; cantavam sem saber que a vida aqui fora podia ser muito melhor. Trinados, gorjeios e assobios se misturavam, criando uma sinfonia que enchia o ar de paz. Era impossível não se sentir tocado pela pureza daquela orquestra natural.

Os passarinhos não eram de Margarida e sim do Dudu. A princípio eu tinha medo do Dudu; um sujeito grandalhão, de pele vermelha e voz retumbante. Mas Dudu não podia ser assim tão mau, afinal quem cria passarinhos deve ter algum coração. Quando o sol beijou com seus primeiros raios o alpendre de piso vermelho queimado, trincado aqui e ali, eu já estava de pé, ansioso para aproveitar o dia.

– Quantos passarinhos você tem Dudu?

– Nunca contei direito. Uns quarenta…

– Que tanto! – Mas você dá conta de cuidar de todos?

– Margarida me ajuda…

De fato, a prima na verdade era quem cuidava de tudo, de tudo mesmo; da lida da casa, do terreiro, do Dudu e das incontáveis gaiolas. Ao contrário do Dudu, Margarida era muito meiga, de fala mansinha e sorriso fácil. Nunca a vi reclamando da vida, talvez por ser uma flor ou quem sabe por ter esta resistência fascinante das mulheres de fibra.

Quando Dudu voltou do trabalho na roça, estava com uma cara melhor que esboçava pela manhã. Deve ter acontecido alguma coisa boa por lá. Aproveitei o bom momento e depois do jantar voltei ao assunto.

– Dudu, quantos coleiros você tem? E quantos pintassilgos?

Estranhamente Dudu e Margarida se entreolharam e nada responderam. Houve um silêncio mórbido. Há tempos eu andava com umas coisas na cabeça, umas caraminholas. Cabeça de menino pequeno é assim, de melão. De pura imaginação.

Onde eu morava, na capital, à frente da casa principal, havia uma área cimentada, retangular e cercada de grades que dava para um muro baixo e então a um portão de metal com uma longa escada; era lá em baixo, no porão, que vivíamos. Éramos aparentemente felizes. Considerava este pequeno espaço geométrico ser minha nave espacial e o céu infinito a missão à lua, que há pouco havia sido alcançada por nós humanos. Corria de um canto a outro, sempre de cabeça para cima, a ver as nuvens correndo e se transformado. Ora eram bichos, ora coisas que eu ainda não conhecia, ora eram passarinhos; estes sabia-os todos. Nas nuvens também havia um menino! Como é grande a dor das coisas que passaram!

O tempo voou e o contar dos dias restantes me angustiava. As horas eram engolidas rapidamente, cada minuto parecia carregar o peso de um foguete. O silêncio da madrugada era preenchido apenas pelos meus pensamentos inquietos, que ecoavam em minha mente como um lamento incessante.

– Dudu, você pegou todos estes passarinhos no mato?

– Não, muitos nasceram aqui.

Ia emendar outra pergunta, mas alguém bateu à porta… Precisava tomar coragem. A areia da ampulheta findava. Chegou o domingo e vieram os parentes. Houve frango com macarronada. Os homens engataram umas conversas e as mulheres foram cuidar de recolher as coisas. Daí a pouco estava todo mundo junto; eu por ali de orelha em pé. Quando ouve uma pausa…

– Dudu, sabia que seus coleiros cantam dobrado? – Houve um silêncio estarrecedor.

– Você não me dá um passarinho não?

Finalmente a coragem irrompeu e atropelou minha boca e mais, todo mundo ouviu de ouvido próprio. De novo Dudu e Margarida se entreolharam. Por mais um tempo o silêncio permaneceu e então caíram na gargalhada.

Um dia quando voltei da escola fui surpreendido por um acontecimento. Meu pai havia ganhado um viveiro de um colega de trabalho que não queria mais criar passarinho. Era um viveiro em forma de capelinha, feito de madeiras toscas e tela bastante enferrujada. Havia lá dentro muitos, muitos canários chapinha, fêmeas e machos, papa-capins, tico-ticos, um cardeal, um curió e alguns casais de belga. Bem no alto e fora do alcance, havia ninhos com ovinhos. Dei de colocar meu coleirinho no viveiro para ele ser mais feliz. Sim, eu ganhei um coleiro cantor do Dudu nas últimas ferias. Ele foi colocado numa caixa de sapatos para ser transportado. Havia uma pequena porta cortada em forma de U e alguns furos para ele respirar. Não foi fácil convencer meu pai deixar eu trazer o passarinho.

Talvez a vida pudesse parar de correr e que o tempo se arrependesse de passar. A felicidade é o canto de passarinhos…

… mas quem dera a existência pudesse ser assim, só de coisas boas. Agora é hora de sofrer. Não vá pensando que as maldades da vida só começam quando a gente se entende por gente. A dor, essa antiga companheira, nos visita desde os primeiros suspiros, quando o mundo ainda é um mistério e os dias são longos e nebulosos. O sofrimento planta suas raízes antes mesmo que possamos nomeá-lo, deixando cicatrizes invisíveis que moldam nossa essência.

Já estava deitado quando a briga começou. Não entendia muito bem o significado das palavras gritadas por eles. Havia momentos que tudo acalmava; então recomeçava mais forte. Com medo puxei o cobertor, cobri a cabeça e tentei tampar os ouvidos. Tal qual a lenda do avestruz, o escuro do buraco era minha segurança. De repente escutei o barulho de coisas quebrando e depois uma porta batendo. Logo reinou o silêncio.

O silêncio porém, era mais assustador que o ruído. Naquele vazio repentino, cada sombra do quarto parecia ganhar vida própria, dançando de maneira ameaçadora nas paredes. Meu coração batia descompassado, um tambor inquieto ecoando na escuridão. Tirar o cobertor da cabeça era um ato de coragem que eu não sabia se possuía. Permaneci imóvel, como se minha quietude pudesse evitar que a tempestade lá fora recomeçasse.

Finalmente, tirei o cobertor e ouvi meus próprios suspiros, tentando encontrar algum sinal de que tudo estava bem. A casa estava mergulhada em uma calmaria traiçoeira, como o olho de um furacão. Deslizei lentamente para fora da cama, meus pés descalços encontrava o chão frio com uma hesitação que quase me fazia desistir. Cada passo era uma eternidade, e o corredor parecia mais longo do que nunca.

Cheguei à sala, onde o caos se revelava em toda sua intensidade. Os cacos de vidro espalhados pelo chão brilhavam sinistramente sob a luz fraca do abajur tombado. A mesa estava virada, e o vaso de flores, agora despedaçado, tingia o piso de ardósia com pétalas vivas. Mas o que mais me assustava era a ausência deles. A casa parecia vazia, como se tivesse sido abandonada no auge da briga.

Chamei por minha mãe; a voz que saia era um sussurro trêmulo. Nenhuma resposta. O eco de meu chamado retornava para mim, aumentando a sensação de desamparo. Foi então que vi a porta da cozinha entreaberta, deixando escapar uma faixa de luz. Com passos hesitantes me aproximei e, ao empurrá-la encontrei minha mãe sentada no chão, abraçada aos joelhos.

Ela me viu. Com um esforço visível tentou sorrir. “Está tudo bem,” murmurou, mas sua voz traía a mentira. Eu sabia que nada estava bem. Sentindo a fragilidade daquele momento fui até ela e a abracei com toda a força que meu pequeno corpo conseguia reunir. Ficamos ali no chão frio da cozinha, encontrando consolo um no outro, enquanto o mundo lá fora parecia desmoronar.

O dia amanheceu cedinho. Minha mãe puxou os cobertores e me abraçou. Com a luz entrando pelo quarto pude ver seus olhos inchados e os cabelos desgrenhados. Sua voz estava rouca. Junto a seu peito percebi que havia algo diferente no ar, no porão, na rua. Não demorei muito tempo para racionalizar. Escorri da cama e fui correndo pra fora. A porta do viveiro estava arrebentada e a tela esmagada. Jamais teria podido imaginar um ato de maldade tão revoltante. Chorei todo choro guardado de menino que não chora.

Naquela mesma noite partimos. Não houve despedida. Talvez tenha sido melhor assim. O trem começou a se mover lentamente. Minha mãe agasalhava minhas irmãs. Queria dividir com elas minha dor. Mas eram tão novinhas, tão alheias aos acontecimentos da noite anterior! Adormecidas, não tinham noção da mudança que estava prestes a transformar nossas vidas. Vi meu pai chegar correndo na estação. Ficou olhando o trem partir; ensaiou um aceno. As estrelas do céu observavam em silêncio o movimento do trem que ganhava velocidade; a paisagem pela janela mudava, as luzes da estação iam ficando para trás, pequenas e indistintas. Aos poucos a escuridão sombria engolfou a composição. Senti uma mistura de emoções – tristeza, medo, e uma esperança tímida, quase imperceptível. Minha mãe, com o olhar perdido, tentava manter a compostura. Seus olhos, no entanto, revelavam a angústia de deixar para trás tudo o que conhecíamos. O balanço do trem, que no início era reconfortante, agora parecia acentuar a distância crescente entre nós e nosso lar. Pensei no provável arrependimento de meu pai. Lembrei-me de sua figura sinistra, postado na plataforma. Ficaria para sempre gravado em minha mente como um espantalho. Meus olhos turvaram, contive; meninos não choram sem razão maior. O trem, que eu sabia para onde ia e por isto mesmo aquecia alguma coisa dentro de mim, rompeu a noite todinha entre andanças e paranças.

A casa da prima Margarida é um santuário…

– Dudu, que tanto de passarinho você tem né?

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