Os números

Roger Salgado
2 min readSep 1, 2024

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O homem nasceu, cresceu, casou. Trabalhou arduamente, mal dormiu; por isto nunca teve tempo para acordar plenamente, amassou o pão do diabo, não orou e nunca analisou sua existência. Educou quem precisava educar. Casou quem precisava casar. Gerou riqueza para si e a sociedade. Teve sócios; acabaram na justiça. Fez inimigos poderosos. Cultivou gastrites e vomitou sangue. Tolerou todos os sabujos. Viuvou. Quando percebeu, a vida havia passado e finalmente aposentou-se. O ócio não conseguiu vencer o negócio em sua cabeça frenética. Por fim a astenia apoderou-se de seu corpo. Sem saída começou a refletir sobre o sentido da vida e decidiu buscar sabedoria.

Iniciou uma longa jornada pelo mundo visitando os cemitérios de todas as cidades que ia conhecendo. Em Varanasi na Índia viu literalmente o que é voltar ao pó. No Père Lachaise em Paris deparou-se com a opulência. No Monte das Oliveiras em Jerusalém encantou-se com as pedrinhas nos túmulos. Na cidade do Cairo no Egito visitou cemitérios onde além dos mortos moram famílias de pessoas bem vivas. Em cada cidade procurava algum sábio que lhe explicasse o porquê de cada cemitério ser daquele jeito.

No columbário do cemitério de La Recoleta em Buenos Aires sentiu pânico. Chorou com a simplicidade do cemitério de São Serafim, situado em uma paradisíaca praia de Icaraí, no Ceará. Espantou-se com o ritual dos corpos esquartejados e oferecidos a abutres em funerais no Himalaia. No México viu os defuntos embalsamados convivendo normalmente com os familiares da casa.

Certa vez chegou a uma cidade onde o cemitério era uma vasta planície. Não havia túmulos nem mausoléus. Sequer criptas ou esculturas. Havia apenas pequenas lápides na grama verde. Milhares delas. Elas continham apenas o nome e um número. Algumas tinham o número cinco, outras quinze. Algumas cinquenta, outras cento e vinte. Raramente encontrava-se números maiores. Raríssimas lápides continham números acima de mil. Ao olhar para uma alameda viu uma pessoa se aproximar. Parecia levitar. Perguntou a ela por que as lápides continham aquele número enigmático. A pessoa, que parecia ser um mestre ou algo parecido, disse com uma voz muito suave que naquela cidade todos contavam o verdadeiro tempo vivido e não o tempo sobrevivido. Convidou o homem para dar um passeio pelo cemitério. Ao fim pararam sob um frondoso salgueiro-chorão. Ao olhar para baixo o homem viu seu nome e o número um. Um dia.

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