Moet & Chandon e outras coisas mais

Roger Salgado
7 min readJan 4, 2021

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Dall-E-2 by Roger

Sinto-me indisposto para tomar meu Moet & Chandon; isto jamais havia acontecido. Tenho calafrios, uma ponta de febre e a garganta arranhando. Claro, não deve ser nada. Eu nunca tenho nada. Sou forte como um touro, desses de touradas em terras de España.

Perdi a hora; vi no Rolex; este descuido nunca aconteceu. Sou como uma máquina suíça; precisa! Minha cabeça martela e já estou tossindo; é uma tosse ressequida. Quero minha água Perrier. Dentro da linda geladeira french door inverse vejo o Moet descansando. Preciso admitir que não estou bem. Não deve ser a peste amarela; não comigo, que soy fuerte como un toro. A peste do oriente está em todos os noticiários; está na CNN; o vírus chinês. Vou adiar os compromissos. Desmarcarei tudo pelo meu Iphone 12 Pro Max. O Governo entenderá; o Governo sempre entende tudo que digo a ele; há anos faço negócios com o Governo. Aprendi a fazer negócios com o Governo com meu pai. Só preciso de um belo descanso em minha revigorante cama king-size.

Acordei ensopado. Mas o dia não é hoje; já é depois de hoje. O calendário mudou no Rolex. Estou com uma dor de cabeça absurda e tenho febre. Vou ver um médico; vou me levantar, tomar um belo breakfast e ir ver um médico. Com certeza o médico dirá ser uma virose; só uma virose; não o sino-vírus que vem sendo difundido nos seríssimos noticiários de Nova York. É só o tempo de eu colocar uma roupa e tomar café. Visto minha camisa Lacoste e vou tomar café. Estranho, não sinto o gosto dos alimentos; isto é impossível! Tenho paladar aguçadíssimo! Já experimentei todos os sabores do mundo. Compro minha comida nos supermercados gourmet; é uma comida para gente como eu; não é aquela comida dos xing-lings. Os xing-lings comem macacos, cachorros e baratas; detestáveis chinos! Estou muito cansado! Talvez seja mesmo a peste amarela. Se for, não me preocupo; sou jovem e forte como o Super-Homem.

Maldito trânsito! Pavorosos carros normais não me deixam seguir rápido para o Einstein. Esses carros populares e os meios de transporte público impedem que meu veloz carro importado chegue rápido ao Einstein. Meu carro importado é potente; tem controle digital de temperatura , seu poder de gelar faz sentir-me um pouco melhor; meu automóvel trazido do primeiro mundo é uma máquina de 300 cavalos; é um foguete e uma bolha de conforto, de luxo e segurança. Mesmo assim, ele é impedido de correr livremente para o Einstein pelos ominosos motoboys que infestam as ruas como praga.

Meu hospital é de primeiro mundo. Infelizmente encravado num país negligenciado; mas é nessa terra que faço negócios com o Governo. Negociar com o Governo é minha arte; aprendi com meu pai e vou ensinar aos meus futuros filhos. A consulta custou 1K com o exímio médico plantonista. Nas sábias e elegantes palavras do exímio médico plantonista, tudo indica ser Covid-19. Que merda de nome! Tinha que se chamar Chinavirus!

Nunca fico doente; sou forte como um búfalo. Como posso ter ficado doente se nunca fico doente? E ainda mais, com posso ter ficado doente com uma doença do oriente? Não estou bem. Desde minha chegada ao Albert Einstein já fui ao banheiro três vezes; estou muito fraco e já não sinto cheiro de coisa alguma. Logo após a consulta com o eficiente médico plantonista fiz, imediatamente, o exame de reação da transcriptase reversa seguida pela reação em cadeia da polimerase para detecção do Comunavirus ao custo 0.50K. Resultado: Positivo.

Estou em um apartamento. É amplo e tem muita luz externa vindo de uma enorme janela. Sob ela repousa um sofá para dois lugares de cor sóbria e, ao lado uma chaise longue; na parede em frente há uma TV; um aparelho que não é como minha smartv de pontos quânticos QLed de 85 polegadas; sobre mim espraiam os equipamentos que preciso para sentir-me seguro e medicado. Sinto falta de ar; minha respiração é curta e ofegante; estou exausto! Tenho febre de quase 40 graus e dor no peito; sinto meu coração disparado. A equipe do hospital indicou nova avaliação com um renomado infectologista: consulta de 1.7 k. Farei tomografia computadorizada e exames laboratoriais. Minha saturação está em 79. É claro que isto é um pesadelo! Vou dormir e acordar. Ao acordar verei que se trata somente de um sonho ruim. Sou forte, jovem e faço negócios com o Governo. Meu pai, que é minha inspiração, me ensinou a fazer negócios com o Governo e eu ensinarei aos meus vindouros filhos. Nunca fico doente. É só um devaneio aflitivo, claro.

Meus pulmões estão funcionando muito abaixo de sua capacidade; meu quadro é grave. Estou oxigenando mal e o padrão da tomografia mostrou comprometimento de dois terços deles; foi a sentença do conceituado pneumologista. Já não sei o preço da consulta com o conceituado pneumologista; não me importo; posso pagar. Faço negócios com o Governo. Meu avô fazia negócios com o Governo e ensinou isso a meu pai; e eu ensinarei aos meus futuros filhos.

Logo veio uma enfermeira; uma enfermeira preta. Ela é quem deveria estar no meu lugar; ela é preta e está saudável. Sou eu quem deveria estar saudável; sempre fui forte como um rinoceronte. Não mereço estar aqui. Vou me levantar e ir até o meu veloz e confortável carro importado que está no estacionamento. Vou chegar em minha maravilhosa residência, ligar a Jacuzzi e sorver o Chandon que repousa na bela geladeira french door inverse de minha propriedade.

Serei intubado! Serei intubado, havia me informado o respeitado cardiologista, o consagrado infectologista e o famoso pneumologista. Sinto agora um leve desespero. A enfermeira preta pergunta meu nome e se desejo fazer uma ligação por vídeo para algum parente; a idiota já deveria saber quem sou. Obviamente não respondi. Dei de ombros. Meus médicos, que têm formação nas principais universidades do mundo, me explicaram maravilhosamente bem como é feita uma intubação orotraqueal. Quase chorei; mas homens ricos não choram. Nós, homens ricos, temos atributos que nos tornam diferentes dos outros: possuímos e desfrutamos desde cedo; somos suaves enquanto os outros são duros; somos realistas quando os outros são esperançosos. É claro que a preta que acompanha minha intubação nunca vai entender isso; ela não nasceu rica. Nasci rico porque meu pai já era rico e o pai do meu pai já fazia negócios com o Governo. Aquela mulher, a enfermeira preta, não sabe o prazer de um Chandon e nem o de passear em um veloz e confortável carro importado da Alemanha. Meu carro importado da Alemanha tem ar-condicionado bi-zone e estaciona sozinho. Espelho o Iphone 12 Pro Max na sua central multimídia. Meu carro importado da Alemanha conversa comigo. Meu filho faz negócios com o Governo; ele aprendeu com o pai do meu pai. Meu veloz Chandon está estacionado na minha linda Jacuzzi; ele só está esperando a Jacuzzi encher para jogar o jogo com o Governo. Meu veloz Iphone 12 Pro Max está impedido de chegar ao Einstein por causa dos abomináveis carros comuns que não correm e entopem as avenidas. Meu lindo carro vermelho importado da Alemanha está estacionado na geladeira french door inverse. Quero beber o Chandon, mas a nefasta preta me prende aqui. A preta não sabe ligar o ar-condicionado digital bi-zone do meu lindo Iphone 12 Pro Max. A preta quer roubar minha linda smartv QLed de pontos quânticos; ela quer beber minha água Perrier. Meu Rolex está com Covid-19; meu Rolex está prostrado em minha cama king-size e não pode mais negociar com o Governo. Chamei o Super-Homem, mas ele fingiu e fugiu montado nos 300 cavalos da Jacuzzi. Sou um touro guiando minha geladeira french door inverse; mas os bilhões de chineses nas ruas não me deixam chegar rapidamente ao Einstein. Meu Rolex mergulhou na Jacuzzi. O Chandon vestiu uma Lacoste e foi tomar café. A preta lésbica agora quer roubar meu veloz carro vermelho alemão injetando vírus amarelo no búfalo. O Moet estourou. O rinoceronte pegou Covid-19, disse o ilustre infectologista. O rinoceronte não faz negócios com o Governo e isso deixa meu pai irado; nem mesmo o touro faz mais negócios com o Governo. A Jacuzzi está voando sobre minha cabeça, que dói latejada. A preta suja quer comer minha perna tomando Chandon deitada nua na Jacuzzi. O Governo não me ligou. Será que o Governo morreu de Covid-19? Minha cama king-size, o Rolex e a Jacuzzi estão me visitando na UTI. Na antessala, minhas outras coisas aguardam. O mercado chinês tem carne de touro, de rinoceronte e de búfalo, empilhados e escorrendo sangue no banco traseiro de couro do meu veloz e confortável automóvel importado da Baviera. O Governo está gritando comigo. O Governo esbraveja e me cobra rapidez nos negócios. O Governo berra: acorda, acorda, acorda…

Está tudo tão branco! Sinto uma enorme calmaria. Ouço bips de equipamentos médicos; ouço vozes ao longe. Há uma luz tremulando no que parece ser uma porta; passando através dela vejo as silhuetas do notável cardiologista, do admirado infectologista, do famigerado pneumologista, do ilustre fisioterapeuta e da enfermeira preta.

— Senhor!? O senhor venceu a Covid! — Disse o afamado fisioterapeuta da UTI.

— Há quanto tempo estou aqui? — Pergunto.

O célebre cardiologista responde perguntando:

— Quanto tempo você acha que ficou aqui?

— Dez horas — respondo.

— Doze dias — crava o sublime infectologista.

— Você agora vai para o seu apartamento e em dois dias terá alta para ir para casa — informou o prestigiado pneumologista.

Começo os cálculos mentalmente: oxigênio — 3K a cada 24 horas; custo da estadia de vaga de UTI — 4.2K a diária; consulta com os especialistas cobradas à parte; insumos; medicamentos; exames; estacionamento; imposto sobre serviço; antes de eu terminar mentalmente a conta vejo que saíram todos. A enfermeira preta permaneceu. Nada disse. Tinha um olhar cortante. Em suas mãos uma seringa.

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Roger Salgado

Talvez um dia você morra. Por precaução leia antes disto.