Moet & Chandon
Sinto-me indisposto para tomar meu Moet & Chandon; isto jamais havia acontecido. Tenho calafrios, uma ponta de febre e a garganta está arranhando. Claro, não deve ser nada. Eu nunca tenho nada. Sou forte como um touro, desses de touradas em terras de España.
Perdi a hora; vi no Rolex; este descuido nunca aconteceu. Sou como uma máquina suíça; precisa! Minha cabeça martela e já estou tossindo; é uma tosse ressequida. Quero minha água Perrier. Dentro da linda geladeira french door inverse, vejo o Moet descansando. Preciso admitir que não estou bem. Não deve ser a peste amarela, não comigo — que soy fuerte como un toro. A peste do oriente está em todos os noticiários, está na CNN; o vírus chinês. Vou adiar os compromissos. Desmarcarei tudo pelo meu iPhone 12 Pro Max. O Governo entenderá; o Governo sempre entende tudo que digo a ele; há anos faço negócios com o Governo. Aprendi a fazer negócios com o Governo com meu pai. Só preciso de um belo descanso em minha revigorante cama king-size.
Acordei ensopado. Mas o dia não é hoje; já é depois de hoje. O calendário mudou no Rolex. Estou com uma dor de cabeça absurda e tenho febre. Vou ver um médico; vou me levantar, tomar um belo breakfast e ir ver um médico. Com certeza, o médico dirá ser uma virose; só uma virose; não o sino-vírus que vem sendo difundido nos seríssimos noticiários de Nova York. É só o tempo de eu colocar uma roupa e tomar café. Visto minha camisa Lacoste e vou tomar café. Estranho, não sinto o gosto dos alimentos; isto é impossível! Tenho paladar aguçado! Já experimentei todos os sabores do mundo. Compro minha comida nos supermercados gourmet; é uma comida para gente como eu; não é aquela comida dos xing-lings. Os xing-lings comem macacos, cachorros e baratas; detestáveis chinos! Estou muito cansado! Talvez seja mesmo a peste-amarela. Se for, não me preocupo — sou jovem e forte como o Super-Homem.
Maldito trânsito! Pavorosos carros normais não me deixam seguir rápido para o Einstein. Esses carros populares e os meios de transporte público impedem que meu veloz carro importado chegue rápido ao Einstein. Meu carro importado é potente; tem controle digital de temperatura e seu poder de gelar faz-me sentir-me um pouco melhor. Meu automóvel trazido do primeiro mundo é uma máquina de 300 cavalos; é um foguete e uma bolha de conforto, de luxo e segurança. Mesmo assim, ele é impedido de correr livremente para o Einstein pelos ominosos motoboys que infestam as ruas como uma praga.
Meu hospital é de primeiro mundo. Infelizmente, encravado num país negligenciado; mas é nessa terra que faço negócios com o Governo. Negociar com o Governo é minha arte; aprendi com meu pai e vou ensinar aos meus futuros filhos. A consulta custou 1K com o exímio médico plantonista. Nas sábias e elegantes palavras do exímio médico plantonista, tudo indica ser Covid-19. Que merda de nome! Tinha que se chamar Chinavirus!
Nunca fico doente — sou forte como um búfalo. Como posso ter ficado doente se nunca fico doente? E ainda mais, como posso ter ficado doente com uma doença do oriente? Não estou bem. Desde minha chegada ao Albert Einstein, já fui ao banheiro três vezes; estou muito fraco e já não sinto cheiro de coisa alguma. Logo após a consulta com o eficiente médico plantonista, fiz, imediatamente, o exame de reação da transcriptase reversa seguida pela reação em cadeia da polimerase para detecção do Comunavirus ao custo de 0.50K. Resultado: positivo.
Estou em um apartamento. É amplo e tem muita luz externa vindo de uma enorme janela. Sob ela repousa um sofá para dois lugares de cor sóbria e ao lado uma chaise longue. Na parede em frente há uma TV, mas um aparelho que não chega aos pés de minha smart TV de pontos quânticos QLed de 85 polegadas. Sobre mim espraiam os equipamentos de que preciso para sentir-me seguro e medicado. Sinto falta de ar; minha respiração é curta e ofegante. Estou exausto! Tenho febre de quase 40 graus e dor no peito; sinto meu coração disparado. A equipe do hospital indicou nova avaliação com um renomado infectologista: consulta de 1,7 k. Farei tomografia computadorizada e exames laboratoriais. Minha saturação está em 79. É claro que isto é um pesadelo! Vou dormir e acordar. Ao acordar, verei que se trata somente de um sonho ruim. Sou forte, jovem e faço negócios com o Governo. Meu pai, que é minha inspiração, me ensinou a fazer negócios com o Governo e eu ensinarei aos meus vindouros filhos. Nunca fico doente. É só um devaneio aflitivo, claro.
Meus pulmões estão funcionando muito abaixo de sua capacidade; meu quadro é grave. Estou oxigenando mal e o padrão da tomografia mostrou comprometimento de dois terços deles; foi a sentença do conceituado pneumologista. Já não sei o preço da consulta com o conceituado pneumologista; não me importo; posso pagar. Faço negócios com o Governo. Meu avô fazia negócios com o Governo e ensinou isso a meu pai; quanto a mim, ensinarei aos meus futuros filhos.
Logo veio uma enfermeira; uma enfermeira preta. Ela é quem deveria estar no meu lugar; ela é preta e está saudável. Sou eu quem deveria estar saudável; sempre fui forte como um rinoceronte. Não mereço estar aqui. Vou me levantar e ir até o meu veloz e confortável carro importado no estacionamento. Vou chegar em minha maravilhosa residência, ligar a Jacuzzi e sorver o Chandon que repousa na bela geladeira french door inverse de minha propriedade.
Serei intubado? Sim, fui informado pelo respeitado cardiologista, pelo consagrado infectologista e pelo famoso pneumologista. Sinto agora um leve desespero. A enfermeira preta perguntou meu nome e se desejo fazer uma ligação por vídeo para algum parente; a idiota já deveria saber quem eu sou. Obviamente, não respondi. Dei de ombros. Meus médicos, que têm formação nas principais universidades do mundo, me explicaram maravilhosamente bem como é feita uma intubação orotraqueal. Quase chorei; mas homens ricos não choram. Nós, homens ricos, temos atributos que nos tornam diferentes dos outros: possuímos e desfrutamos desde cedo; somos suaves enquanto os outros são duros; somos realistas quando os outros são esperançosos. É claro que a preta que acompanha minha intubação nunca vai entender isso; ela não nasceu rica. Nasci rico porque meu pai já era rico e o pai do meu pai já fazia negócios com o Governo. Aquela mulher, a enfermeira preta, não sabe o gosto de um Chandon e nem o prazer de passear em um veloz e confortável carro importado da Alemanha. Meu carro importado da Alemanha tem ar-condicionado bi-zone e estaciona sozinho. Espelho o iPhone 12 Pro Max em sua central multimídia. Meu carro importado da Alemanha conversa comigo. Meu filho faz negócios com o Governo; ele aprendeu com o pai do meu pai. O veloz Chandon está estacionado na minha linda Jacuzzi; ele só está esperando a Jacuzzi encher para jogar o jogo com o Governo. Meu veloz iPhone 12 Pro Max está impedido de chegar ao Einstein devido aos abomináveis carros comuns que não correm e entopem as avenidas. Meu lindo carro vermelho importado da Alemanha está estacionado na geladeira french door inverse. Quero beber o Chandon, mas a nefasta preta me prende aqui. A preta não sabe ligar o ar-condicionado digital bi-zone do meu lindo iPhone 12 Pro Max. A preta quer roubar minha linda smart TV QLed de pontos quânticos; ela quer beber minha água Perrier. Meu Rolex está com Covid-19; meu Rolex está prostrado em minha cama king-size e não pode mais negociar com o Governo. Chamei o Super-Homem, mas ele fingiu não me ouvir e fugiu montado nos 300 cavalos da Jacuzzi. Sou um touro guiando minha geladeira french door inverse; mas os bilhões de chineses nas ruas não me deixam chegar rapidamente ao Einstein. Meu Rolex mergulhou na Jacuzzi. O Chandon vestiu uma Lacoste e foi tomar café. A preta lésbica agora quer roubar meu veloz carro vermelho alemão injetando vírus amarelo no búfalo. O Moet estourou. O rinoceronte pegou Covid-19, disse o ilustre infectologista. O rinoceronte não faz negócios com o Governo e isso deixa meu pai irado; nem mesmo o touro faz mais negócios com o Governo. A Jacuzzi está voando sobre minha cabeça, que dói latejada. A preta suja quer comer minha perna tomando Chandon deitada nua na Jacuzzi. O Governo não me ligou. Será que o Governo morreu de Covid-19? Minha cama king-size, o Rolex e a Jacuzzi estão me visitando na UTI. Na antessala, minhas outras coisas me aguardam. O mercado chinês tem carne de touro, rinoceronte e de búfalo, empilhados e escorrendo sangue no impecável banco traseiro de couro do meu veloz e inconfundível automóvel importado da Baviera. O Governo está gritando comigo. O Governo esbraveja e me cobra rapidez nos negócios. O Governo berra: acorda, acorda, acorda…
Está tudo tão branco! Sinto uma enorme calmaria. Ouço bips de equipamentos médicos; ouço vozes ao longe. Há uma luz tremulando no que parece ser uma porta; passando através dela, vejo as silhuetas do notável cardiologista, do admirado infectologista, do famigerado pneumologista, do ilustre fisioterapeuta e da enfermeira preta.
— Senhor!? O senhor venceu a Covid! — disse o afamado fisioterapeuta da UTI.
— Há quanto tempo estou aqui? — Pergunto.
O célebre cardiologista responde perguntando:
— Quanto tempo você acha que ficou aqui?
— Dez horas — respondo.
— Doze dias — crava o sublime infectologista.
— Você agora vai para o seu apartamento e em dois dias terá alta para ir para casa — informou o prestigiado pneumologista.
Começo os cálculos mentalmente: oxigênio — 3K a cada 24 horas; custo da estadia de vaga de UTI — 4,2K a diária; consulta com os especialistas cobradas à parte; insumos, medicamentos, exames; estacionamento; imposto sobre serviço; antes de eu terminar mentalmente a conta, vejo que saíram todos. A enfermeira preta permaneceu. Nada disse. Tinha um olhar cortante. Em suas mãos, uma seringa.