Meu bom José

Roger Salgado
11 min readSep 19, 2024

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Quando Chronos, de forma divertida, moveu o relógio e fez chegar o dia 2 de junho de 1975, todas as garotas pararam de exercer suas funções. Exceto no mundo quântico dos experimentos nucleares do CERN, essa suspensão foi sentida de maneira tão espantosa. O acontecimento escatológico deixou casais em alvoroço no avançar da madrugada, quando o azulado da aurora ainda nem despontava no horizonte. Em alguns locais de trabalho elas se desinteressaram instantaneamente e, uma vontade louca de orar e expiar os pecados abateu-se sobre suas mentes. Em alguns casos nem mesmo o álcool ou outras substâncias conseguiram reanimá-las. Sequer a lembrança das contas a pagar no dia seguinte conseguiu demovê-las de abandonar o serviço. Era um fato consumado. Questões de primeira ordem foram levantadas acerca das funções e atribuições, que não eram lineares. Havia níveis a serem respeitados, resolvidos ou, no mínimo, esclarecidos. Quem era quem? Algumas poderiam dizer que não estavam trabalhando por dinheiro. Outras poderiam afirmar serem fixas. E as mais exaltadas vociferariam: “O que estou fazendo aqui?” Milhares cairiam no pranto com as mãos entrelaçadas ao rosto. É bom lembrar que isso está acontecendo no mesmo país onde, anos antes, a morte parou de operar. Aquele mesmo país encravado entre outros três, sem saída para o mar. Quer dizer: uma ilha artropática. Mas nem sempre foi assim. O país deste relato perdeu o acesso ao oceano após a Batalha da Blasfêmia contra o inimigo do leste, em 1876. Antes disso o território marítimo era uma pequena área contígua, mas suficiente para o comércio ultramarino e o espocar dos fogos de artifício na festa de virada do ano. Porém mesmo tendo perdido a primazia, o país manteve sua Marinha, com a esperança guerreira de algum dia voltar a ter acesso ao mar. Inclusive, ela tem um mote: “Este mar nos pertence por direito, tê-lo de volta é nosso dever e nossa honra.” Há de se ter pena de um povo que não tem um mar para chamar de seu. Um país que enfrenta essas atrocidades disruptivas deve estar mesmo pagando por algum pecado ou crime hediondo; certamente com as condenações que lhe foram imputadas sendo exigidas de tempos em tempos. Os opositores acusam a política nacional ultra-arcaica de ter se rebelado contra o senso comum do resto do continente. Julgam que a rejeição aos tratados continentais e a obstinação de manter a todo custo uma pureza étnica, ao ponto de romper relações com algumas nações e impedir a natural miscigenação com povos de peles coloridas e línguas diferentes, foi o maior motivo. A elite deveria ter permitido, pelo menos com raças iguais; lembrando da máxima: entre iguais há de haver iguais mais iguais que outros. Acho que se trata de uma frase bíblica; ou será do livro Revolução dos Bichos? Melhor deixar isso pra lá, coisa miúda

Vamos nos ater aos fatos. Trago estas notícias de uma fonte fidedigna; uma fonte que não ficou nem um pouco surpresa com estes trágicos acontecimentos, exceto por ter sido pega de surpresa no ápice vulcânico, nesta estranha madrugada. Não quero e nem vou explicitar ou divulgar aqui minúcias do entrevero da fonte. Até porque, além de mim, ninguém sabe e nem saberá de sua atual situação civil.

Mas ao mesmo tempo, esta audiência hiperinteligente há de se perguntar: se a fonte sabe a origem e o porquê do problema, por que não o diz logo e acaba com o mistério? Na realidade ela pode estar enfrentando uma situação complexa, com outras funções na vida além desta que foi vergonhosamente flagrada. O que posso dizer é que se trata de um ser preditivo. Mas não se trata de uma cartomante, discípulo de Nostradamus, um astrólogo de plantão, uma jogadora de búzios ou aquela bruxa que se autodenomina A Quebra-Ovos e que vê o destino dos incautos nos ovos quebrados, tão claro como uma omelete com presunto e páprica.

E também não é uma burocrata ligada à inteligência governamental, que por sua excelência notória haveria de saber tudo o que se passa, ou passava, no tempo exato do verbo, neste país. É evidente que ela não pode publicitar nada por agora por motivos de vida ou morte, conforme me disse. Retornando… de fato é isto mesmo. As meninas pararam de funcionar. Ou como se dirá lá pelo século XXI, foram colocadas em layoff por alguma entidade sobrenatural.

Como era inevitável a manhã chegou. Com o inusitado das ocorrências era esperado que as notícias ganhassem a grande imprensa, a nanica ou a marrom. Mas que nada! Oh, saudade dessa música! Nenhuma palavra foi dita, sequer impressa nos jornais; a televisão trataria das banalidades do dia a dia, sejam políticas, sensacionalistas ou de caráter policialesco. Todos em boca de siri. Engraçada essa expressão! Foi passada entre gerações desde que o país tinha mar. Se o leitor não se lembra, o pequeno crustáceo tem uma boca tão minúscula que dificilmente pode ser identificada a olho nu. Ao prender uma presa com a boca, que possui garras, o siri não solta nem mesmo depois de morto. Fingir de morto também passou a ser a prevalência dos clientes contumazes dos serviços ora descontinuados. “Se isso não é comigo, como posso saber disso?”, defendiam-se mentalmente. Esperavam que alguém corajoso ou doido desse a notícia incontinente. Mas nem de manhã, nem na hora Noa, nem no telejornal noturno saiu qualquer notícia. Tudo continuava como dantes no quartel d’Abrantes. Com a chegada da noite deste primeiro dia formou-se um pequeno burburinho nos sobrados da rua Direita.

– Não chegou nenhuma ainda?

– É, nadinha de nada.

– Cadê as meninas?

Era o que mais se ouvia entre os homens. No entanto a situação era de calmaria, nada que despertasse a irrepreensível capacidade dos governos de intervir na ordem pública.

Porém estamos relatando sobre a parte adjacente e não nos atentamos às protagonistas, que são as meninas… vejamos: no primeiríssimo segundo deste dia que ainda não acabou, pois estamos na fase embrionária do imbróglio, foi sentido por elas um aperto no crânio. A sensação era como um martelo invisível que golpeava incessantemente. Os pensamentos turvaram e se tornaram confusos, como se uma névoa densa tivesse invadido a mente. Uma ferroada, lembrando um alicate de pressão, comprimiu os nervos. Foi uma dor lancinante, mas de curta duração; uns 30 segundos. Aos poucos a dor aguda se transformou em dor latejante e uma forte náusea quase as fez vomitar. Lentamente a dor foi desaparecendo até sumir completamente e enfim tiveram uma sensação de profundo alívio e paz. As que estavam no ato em si tornaram-se imotas; as que estavam nas preliminares tornaram-se confusas e as que estavam de folga, mas com a profissão gravada no DNA sentiram-se pastosas. Agora o esperto leitor há de questionar, mas como assim? Como este bizarro incidente poderia alcançar diligente todas elas? Havia um label? Quem apertou o botão? Como isto é possível? Ser realista implica reconhecer o inexplicável. O que surge. O de repente. É preciso saber se adaptar a isso e compreender que se formos entrar nesta seara talvez nos atolemos no pântano dos detalhes, haja vista que existe um universo em expansão quando se trata da complexidade humana. Vamos ficar, para o próprio bem da história, circunspectos às coisas do fato concreto. E o fato é que após a descarga elétrica, as meninas se descolaram, se cobriram, se enojaram e postaram-se a rezar. Até as que não tinham qualquer proximidade com a religião, passou, como aquelas que um dia ouviram a Palavra, a se imolar e implorar por perdão e salvação. Havia no entanto um problema de ordem puramente trivial sobre o socorro às pobres. Dois de junho caiu numa segunda-feira e a maioria das igrejas não funciona a todo vapor neste dia como nos finais de semana. Então, as que se deslocaram até a igreja mais próxima deram com os burros n’água. Contudo havia uma crescente e promissora onda religiosa vicejando. Por isto com a portada na cara elas se dirigiram às igrejas evangélicas, que independentemente dos dias de feira ou sem feira abrem as portas com no mínimo três cultos ao dia. Este repentino aumento do rebanho fez os pastores esfregarem as mãos. Um bom pastor reconhece suas ovelhas e mais ainda as ovelhas desgarradas.

No segundo dia da hecatombe silenciosa uma inquietação tomou conta dos locais de trabalho das nossas meninas e, uma enorme apreensão sacudiu os alicerces da sociedade. Aos poucos o zum-zum-zum que corria de boca em boca começou a fazer efeito e se espalhou entre os grupos que normalmente trocavam informações sobre o negócio. Entre eles estavam proxenetas graúdos, cafetões gerentes e os proprietários dos imóveis que abrigavam os estabelecimentos.

Não podemos dizer que houve desespero, mas sim revolta, ódio, ameaças e discussões sobre os procedimentos, talvez temerários, a serem tomados. Como sabemos, este é um tipo de empreendimento sustentado por uma aliança quádrupla entre trabalhadoras, intermediários, parte da polícia que faz vista grossa, mas que enxerga muito bem o lucro da empreitada, e os clientes.

Ao fim do segundo dia, foi instalado um gabinete de crise, composto pelos segundos e terceiros agentes, com o objetivo de preparar ações para estancar os prejuízos. Ficou decidido que o melhor era empregar a força imediatamente e pôr em prática todas as ações que um dia foram apenas ameaças. Nada de conversas calorosas. Os agentes iriam a campo para trazer o plantel de volta, custasse o que custasse.

Como as tratativas não tiveram a delicadeza nem a discrição exigidas, ao fim do terceiro dia todo o país ficou sabendo da greve. A notícia foi amplamente divulgada nos meios de comunicação por ondas e, na manhã do quarto dia, também em todos os jornais impressos. O que era embrionário nasceu e virou um escândalo de proporções dantescas. E agora? Das charges debochadas às sérias discussões, tudo foi tratado.

Era um caso de saúde pública, declarou o ministro da Saúde e Bem-Estar Social. Era necessário rever as leis e apresentar um projeto para proteger as trabalhadoras, requisitou a ala progressista da casas legislativa. Era um sinal de que Deus estava corrigindo uma aberração de seus filhos, afirmou o clero. Era preciso aplicar a lei que protege a sociedade e exigir uma cota mínima de trabalhadores durante uma greve, sugeriram especialistas em programas variados.

Um desses especialistas teve a insensatez de propor a volta aos procedimentos adotados na Primeira Praga, quando houve a aposentadoria da morte: bastava transpor as moças para o outro lado da fronteira que elas voltariam a funcionar. Porém o incauto especialista não contava com a agilidade dos empresários ao se deparar com o problema, pois essa foi exatamente a primeira manobra tentada. No entanto não funcionou. As meninas continuavam apáticas e desligadas, autômatas e frias, insensíveis e isentas de ambição; a única coisa que saía de suas bocas eram padres-nossos e ave-marias e, no caso das evangélicas, cantos gospel.

Natimorta, a proposta do alegre e bobo especialista, assim como as de todos os colunistas que se arvoravam a saber de tudo, foram descartadas. Na tarde do quinto dia foi decretado Estado de Calamidade Pública, assinado pelo primeiro-ministro da nação. A decretação do estado de calamidade liberava o poder executivo para tomar providências. Dentre as medidas mencionadas no decreto, duas se destacavam: o estado poderia, como em um estado de guerra, convocar voluntárias, e todas as leis feministas anteriormente aprovadas estavam suspensas. Segue a semana.

Agora estamos no alvorecer de sábado, com a sociedade em polvorosa acerca dos caminhos a seguir. Os noticiários começaram a mostrar o aumento brutal de casos emergenciais de toda ordem e a polícia sentiu o impacto. É importante explicar que a greve involuntária atingiu somente as trabalhadoras, deixando de fora todas as outras mulheres. Por isso começou a ocorrer agressões de toda sorte, tanto verbais quanto físicas, contra aquelas que se negavam a fazer o papel das meninas. Não se sabe ainda se essa negativa era em apoio incondicional ou por desforra, por terem sido preteridas pelos parceiros ao longo do tempo.

Em um dos atendimentos da polícia, houve o caso de um homem que não procurava a esposa há mais de 30 anos e, repentinamente, com a carência dos serviços, ordenou que ela cumprisse seu papel de esposa. Saiu com a cabeça rachada por um pedaço de pau. Os casos de violência se multiplicaram e já eram tratados como assunto de urgência nacional. A imprensa estrangeira cobria apreensiva tudo que se desenrolava naquele país, amassado pela Segunda Praga. Temendo algo semelhante, o Conselho das Nações exigiu e houve um encontro às pressas com os chefes do Governo, de Estado e a Suprema Corte em terreno neutro.

No início do sétimo dia, foi decretado Estado de Sítio e a caça às bruxas foi deflagrada. O povo lotou as igrejas, implorando ao Senhor que intercedesse pelo país. “Quem ou o que provocou isto? Por que merecemos isto? Dai-nos, Senhor, uma saída.” Enquanto o povo orava, o governo agia. Foi instaurado um grupo secreto dentro da polícia para encontrar os culpados e restaurar a ordem.

Como sempre acontece, as investigações começaram pelo lado mais fraco, sendo colhido o depoimento das trabalhadoras, seguidas pelos empresários e, de forma mais discreta, por aquela parcela da força de segurança mencionada anteriormente. A quarta parte foi poupada para não macular nenhuma reputação. Nada de relevante foi apurado que levasse a uma conclusão. Nos dias anteriores tudo havia acontecido normalmente. As meninas recebiam pouco pelo trabalho, algumas eram maltratadas e o recolhimento do dinheiro era feito prontamente. A vida seguia normalmente seu curso.

No âmbito das investigações, apenas um pequeno detalhe, aparentemente sem importância, foi encontrado: três dias antes, um famoso escritor foi visto na rua Direita, não na função, mas ouvindo as trabalhadoras. Foi considerado fazer uma oitava com ele, no então houve consenso. O que um velho escritor poderia haver com os acontecimentos? Nada.

Passaram-se algumas semanas e a busca pelos culpados continuava a dar voltas em círculos. Decidiu-se pedir ajuda a um país do norte, célebre por suas condutas liberais nos usos e costumes. Havia esperança que a experiência alheia acendesse uma fagulha de entendimento. Nada!

O presidente do Supremo mandou o governo ater-se à ciência e exigiu intervenção médica num primeiro momento e averiguação psíquica num segundo. Depois dos eletroencefalogramas e laudos psiquiátricos, nada de anormal foi encontrado. A saúde das meninas estava perfeita. Nesta altura o país já estava em franca desagregação social, tanto dentro de casa quanto nas ruas. E o inevitável aconteceu: revoltados clientes passaram a incendiar as casas onde outrora eram atendidos. Houve muitos feridos e, por pouco a primeira morte. Aqui cabe uma troça: como é difícil morrer neste país!

Dispensado de promover concurso público devido ao estado de excepcionalidade que vivia o país, a polícia secreta contratou um sujeito denominado Caçador de Maldades. Parapsicólogo e fã de Sherlock Holmes, o salvador da pátria partiu para o front. Passou a conviver com o primeiro grupo disfarçado ora de pastor, ora de acólito. Em vão. Nada colaborava com seu trabalho e o tempo voava, agora já com mais de sessenta dias de greve.

Acuado, o primeiro-ministro fez um pronunciamento surpreendente em rede de rádio e TV. Implorou às trabalhadoras que regressassem ao trabalho, prometendo revisar as condições laborais, reconhecer legalmente a profissão além de outros mimos. Certamente ao se dispor a fazer esse inusitado apelo, era devido aos estados de calamidade e de sítio que não surtiam efeito, assim como o trabalho investigativo.

Com a inutilidade do apelo público, o governo já se preparava para o pior e colocou em alerta máximo o aparato policial e militar. A trajetória de um povo é uma jornada repleta de altos e baixos, momentos de alegria e desafios inesperados. Em meio às dificuldades é comum sentirmos que as adversidades são intermináveis, mas é importante lembrar que nada é permanente. Assim como as estações do ano mudam, as fases difíceis também passam. E, graças a Deus, essa fase passou.

No nonagésimo dia, uma luz se acendeu. O Caçador de Maldades ouviu dizer que uma menina havia retomado seus afazeres em um vilarejo no noroeste do país. Ele correu para lá e, ao chegar soube de mais um caso, e depois de outro.

Durante a paralisação, com tempo de sobra, as meninas começaram a ler. Quando liam algum livro recuperavam a vontade de trabalhar. Inicialmente não se sabia qual livro ou o motivo. Mas ao serem entrevistadas pelo Caçador de Maldades, todas diziam que ao terminar de ler recuperavam a consciência.

Passou-se a investigar se havia algum nexo causal entre os livros e a cura. Havia. Após uma detalhada investigação, chegaram à conclusão: o livro em questão tinha sido recentemente lançado e era daquele famoso escritor. Sem demora, o até então sumido presidente foi à TV e, em uma circunstância pomposa e sorridente, anunciou que a cura para a praga havia sido encontrada.

No dia seguinte ordenou-se que todo o parque gráfico passasse a imprimir o livro. Milhares e milhares de exemplares foram distribuídos gratuitamente e, todo o país passou a ler insanamente.

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