Cola de maresia

Roger Salgado
8 min readFeb 2, 2023

--

Dall-E-2 by Roger

Sem nenhum prévio aviso, o mar veio dar em Belo Horizonte. Não é sabido ainda se por estas desordens do clima, do tempo calamitoso dos últimos anos ou por algum motivo político. Fez a principal de suas praias em redor da área central. Sem mais delongas foi batizada pelo povo de Praia do Contorno. Célere, a profícua prefeitura atendeu aos anseios dos comerciantes e munícipes. Mandou plantar calçadões de pedra portuguesa em toda a orla; odenou ao arquiteto do projeto para basear-se nos curvos desenhos que Niemeyer deixou como legado. A abastada e tradicional família mineira, peço vênia, já não mais tão tradicional assim, entrou em polvorosa. A Marina de Lourdes foi projetada, executada e entregue em tempo recorde para ancorar os monumentais iates, alguns deles transferidos às pressas de Escarpas do Lago.

Fui designado pela sucursal do jornal para cobrir o caso e tudo leva a crer que o mar que veio mostrar a cara por aqui é justamente o mar do Rio de Janeiro, aquele da gema, haja em vista que, passadas poucas horas da chegada das salgadas águas, foi percebido lá pelas bandas da Avenida Getúlio Vargas, nativos puxando discretamente um xis, quando pediam pastéis de queijo no Rei do Pastel. Outro forte indício foi que, águas poluídas e improprias para banho, provavelmente oriundas do Piscinão de Ramos e ou da Urca, desaguaram lá na lagoa da Pampulha; aquela que meu querido amigo Juscelino Kubitschek encomendou quando fora prefeito da jovem cidade. Ainda bem que não viveu para ver o descaso e concluir que porcaria com porcaria sempre dá merda mesmo.

Tão rápida quanto a prefeitura em disponibilizar equipamentos aos cidadãos, a arquidiocese, na figura do bispo, pediu uma alteração no projeto da nova Catedral Metropolitana, transferindo-a para a Praça do Papa e, pasmem, ordenou a demolição do Cristo Redentor do Bairro Milionários e erigir um novíssimo na Serra do Curral; quem sabe o maior do mundo; no intuito desesperado de alegrar, encantar e, quem sabe, amedrontar os fiéis, que há tempos andam migrando para outras nomenclaturas. A curia local viu no ar, melhor, no mar, uma oportunidade única de ocupar o espaço perdido pelo episcopado quintencenário.

A cidade encheu-se de alegria e entusiasmo. Uma festa sem fim, aquele abraço e sorrisos incontidos! O povão nas praias formando uma massa pululante. Concomitantemente o mar trouxe outro sol, que se pôs a arder aos 40 graus. BH estava linda, continuava sendo. As farmácias e drogarias (jamais soube qual é a diferença entre elas) nunca vendeu tanto protetor solar, e nas lojas de roupas, o que restou de exemplares de biquinis, maiôs, saídas de praia e sungas, eram disputados aos tapas e pescoções. Isto sem dizer que comerciantes do Shopping Oiapoque desistiram de vez dos eletrônicos piratas e investiram freneticamente em pranchas de surf e acessórios de praia.

Em pouco tempo formou-se a baixada mineira, com Ribeirão das Neves e Sabará liderando a associação. Nova Lima, esnobe como sempre, ficou de fora; achava um acinte ser classificada como baixada. Preferiu fazer uma ponte marítima até Alphaville criando sua praia particular, só trocando o nome de Lagoa para Praia dos Ingleses. Deixa estar!

Os finais de semana eram um luxo só; novíssimos surfistas pegavam onda desde a Curva do Ponteio até o Shopping Pátio Savassi no final da Avenida Nossa Senhora do Carmo. Havia agarramento no trânsito com a chegada de caravanas da baixada e também de outras cidades do interior. A Superintendência de Limpeza Urbana não dava mais conta de juntar tanto detrito, composto por ossos de frango, quentinhas de feijão tropeiro e farofa, garrafas de cachaça, latinhas de cerveja, coco e guimba de cigarro. Abriu um concurso público para contratação imediata de mil sorridentes garis.

Encantados com a fulgurosa multidão disposta a consumir, os entregadores de comida, os desocupados em geral, os nem-nem, os ambulantes tradicionais e todos aqueles que não mamam nas tetas da loba pública, mudaram de vida e foram vender mate gelado e biscoito.

Por falar em biscoito, como uma coisa leva à outra e uma outra leva à coisa nenhuma, o empresariado não poderia ficar de fora da festa e o mais esperto de todos foi o dono de uma antiga fábrica de pão de queijo; na surdina trocou toda a produção por biscoitos de polvilho e lascou a marca: Biscoitos Globo Minas. Mas teve que mudar a marca incontinente, sob severos protestos de uma poderosa rede de mídia junto ao instituto de marcas e patentes. Ficou sendo só Biscoito de Polvilho Salgado Uai. O biscoito doce não pegou.

Estabelecida a Baixada Mineira era chegada a hora de a comunidade brilhar. O Morro do Papagaio e o Complexo de Favelas da Serra disputaram quem tinha a melhor vista para o mar. Deu empate. A cidade já tinha, mas não é prudente deixar de citar a explosão dos bailes funk e rodas de samba. Aconteceu também a invasão de turistas estrangeiros à guisa de diversão. Belo Horizonte já não era mais um ovo, uma roça grande, como os nativos se auto referiam. Agora era uma metrópole moderna, conhecida mundialmente; pensaram até em trocar o nome do Mineirão, mas desistiram por questões de quebra de contrato. As torcidas dos dois grandes times e um nanico de Beagá viraram a folha: tornaram-se rubro-negros, tricolores, veraneio-vascaínas e sei lá mais o que… fanáticos traíras!

Em toda esquina ouvia-se: Mermão, que vida boa! Sol, mar, cerveja, calor, mulheres esculpidas, todas de bundinha de fora e topless na areia. Queriam todo o ardendo só pra elas. Rapazes sarados jogando frescobol e os artistas, ah! Lindo! Eram vistos em profusão. Restava agora esperar pela queima de fogos da virada do ano na Praia do Buritis e o carnaval no sambódromo da Afonso Pena, que não tardaria.

O mar chegou em dezembro, que coisa boa! Mas, em fevereiro tem carnaval, tem carnaval. Quem tem um fusca e um violão? Que mentalidade mediana! O querido bloco Então Brilha não se abalou com a provável vinda da Banda de Ipanema e mandou ver nos ensaios. Maneiro! Todavia seria mesmo impossível a concorrência das tradicionais escolas de samba, como a Canto da Alvorada, enfrentando escolas exalando maresia. Todo mundo queria mesmo era ver a Mangueira entrar.

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela, menina, que vem e que passa, num doce balanço a caminho de amar!” Tocava sem cessar nas emissoras de rádio. Nos cultos, além dos pedidos do dízimo só se ouvia: Como Deus abençoou nossa cidade! Como Deus privilegiou nossa gente! Como Deus é magnânimo com nossa natureza! Como Deus é mineiro!

Bronzeados leitores, vocês como eu, sabemos que, apesar de BH ter se tornado uma cidade mais maravilhosa, nem tudo são flores. Nem mesmo eu, em minhas maiores zacarísticas e fantasiosas pirotecnias, conseguiria imaginar tão “fantástica” realidade!

O RJTV, a platinada rede midiática rapidamente se adaptou, noticiou que houve troca de tiros entre a polícia e traficantes no Túnel da Lagoinha e os motoristas tiveram que se esconder atrás dos carros, alguns mais afoitos tentavam voltar de marcha em ré.

Com a falta de pão e queijo, a abstinência começou a afetar o humor e a saúde mental da população. Houve uma tentativa de greve por parte dos padeiros, rapidamente debelada pela milícia militar.

Gangues rivais da Pedreira Prado Lopes e da Cabana do Pai Tomás decretaram toque de recolher e a bala comeu. Foi acionado o Caveirão restaurando a ordem. Graças a Deus!

Mas isto tudo são coisas menores, a questão melindrosa foi a situação dos bares e botecos. Vejamos: considerada a capital nacional dos botecos e de fato possuindo milhares destes estabelecimentos, desde os mais copos-sujos aos mais requintados, estes mesmos passaram a ter em sua porta ninguém mais, ninguém menos que: o mar. Imagina! Se BH não tinha mar por isto o destino de todos era o bar, agora fora juntada à fome a vontade de beber. Com o passar dos dias o índice de alcoolismo bateu nas alturas e a desagregação social ficou insuportável com pessoas passando 24 horas por dia bebendo loucamente.

Tudo bem, não existe limonada sem espremer o limão e, aos poucos a cidade foi se acostumando com a nova língua, hábitos e trejeitos; já se sentiam cariocas de coração e efeito. Mas havia severas discordâncias; por isto o Tribunal Superior Eleitoral, a mando do Congresso Nacional, encomendou, intempestivo, um plebiscito sobre a atual situação federativa. Os institutos de pesquisa coraram de vergonha, pois não foi acachapante a derrota do NÃO; com uma diferença mínima ganhou o SIM: queremos manter nosso bronze. Era a pergunta. Inconformados com a vitória do SIM, moradores dos bairros Belvedere e Cidade Jardim pediram a anulação do pleito alegando fraude nas urnas. Fizeram acampamento e concentração em frente à Companhia de Comando do Exército da 4ª Região Militar, na avenida Raja Gabaglia, pedindo sua intervenção em nome de Deus, Pátria, família, liberdade, propriedade, bons costumes e ordem e progresso. Não conseguiram e a insurreição foi natimorta.

Entremente, outra urdidura estava em gestação. Sabedores do resultado da Intentona do Pão de Queijo e pior, ouvindo o bordão interior “olha o carnaval aí gente”, o combalido prefeito do Rio, o que restou da classe política, a cúria metropolitana, facções rivais – em inédita aliança – presidentes de grêmios escolas de samba, líderes comunitários, falidos empresários, a antiga malandragem e os inocentes do Leblon deixaram de lado suas vendetas e reuniram-se nos braços do Cristo Redentor, único lugar ainda não submerso da cidade, para tomarem uma atitude. Entraram desesperadamente com uma ação no Supremo, não aquele do planalto central, mas àquele outro que à todos escuta, socorre e dá em liberalidade, implorando pela volta da normalidade. Prostraram-se de joelhos, abraçados e, de doer, chorando sangue.

Jack Soul Brasileiro, refletiu o Supremo, tratou de encontrar brechas para poder atender aos desvalidos que se encontravam sob o sovaco de seu amado filho. Achou uma. Após vasculhar suas leis pétreas, concluiu que quem já tem um belo horizonte não precisa de mar e deu um prazo de 48 horas para que o errante oceano regressasse à sua origem. Haaaaaaa!

Que armadilha!

Que armadilha!!

Que armadilha!!!

A cidade ficou escandalizada e inconsolável. Foi mesmo uma pena! Mas, quem sabe no ano que vem não desagua por aqui um outro mar; quiçá aquele de Todos os Santos!?

Deus já não gosta mais do povo. Será que continuarão o amando mesmo assim? Restou terra seca e arrasada. Que pena! Ainda assim chegou o carnaval. Não há dor que sempre dure. Do silêncio sepulcral que envolvia a cidade foi ouvido o apito do mestre da bateria e o surdo de marcação pulsou o tempo forte do samba. Recuperada da catarse, o povão colocou o bloco na rua, cantou e dançou até a quarta-feira de cinzas: “Mas, não vamos chorar. Nós vamos é cantar, pois a vida continua, e não vamos ficar chorando no meio da rua, esperando que alguém nos dê razão ou a mão.”

“Ad mare declivus omnis currit cito rivus.”

A água corre para o mar, e as coisas para o seu natural.

--

--

Roger Salgado

Talvez um dia você morra. Por precaução leia antes disto.