Como zune um novo sedã

Roger Salgado
4 min readAug 13, 2024

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E as estrelas caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte. E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares. Apocalipse 6:13 – 14

Diante de meus olhos alastra-se a planície vasta, infinita, sobejada por uma cadeia de colinas; recostando e espiando umas por trás das outras. Elas se fundem em ondulações estendidas e desaparecem na imensidão lilás. Nunca sei onde começam nem onde terminam… O sol, que já espreita por esta banda da terra, dá início aos seus afazeres. No começo, uma extensa faixa de um amarelo-claro rasteja até onde o céu se encontra com a terra e depois uma outra faixa brilha mais perto, arrastando-se até as colinas. É chegada a hora de eu recomeçar meu trabalho.

Pelo caminho vou recolhendo todos os desvalidos. A quantidade é enorme; espantosamente maior que de costume. O que está a acontecer com a existência, que devolve tanta gente? Qual é o atual desequilíbrio? Ao longo da jornada alternamos vales e pradarias, formosos e silenciosos; atravessamos brumas e estepes; passamos por paraísos; repentinamente estamos em lugares inóspitos, desertos escaldantes, selvas úmidas e abafadas; às vezes chuvas torrenciais caem sobre nossas cabeças. Sempre vou à frente com meus ajudantes; atrás, os sucumbidos. De quando em quando viro-me para ver suas faces; parecem não entender o que se passa, mas, ao mesmo tempo, ninguém questiona nossa viagem. Admiravelmente todos permanecem em silenciosa complacência. Minha condenação é conduzir as gentes. Imagino o porquê desta sentença: deve ser pelo fato de eu pensar a humanidade; pode ser por ter gastado a vida buscando a resolução de todos os problemas. Mas acredito ser, a verdadeira razão, minha famosa, universal e dolorida eficácia. Mas, mesmo eu, apesar de a todo o momento ir tomando as decisões, não as sei por completo, como um manual técnico; me guiam a aleatoriedade e as circunstâncias. Mas, basta dizer: – e agora? As respostas chegam claras e objetivas. Às vezes, sinto que caminhamos dias a fio, andando em círculos; por isso minha imediata decisão de pararmos para descansar. Mas, descansar de que, se a sensação de cansaço não é exatamente sentida? Obviamente que tudo é somente intuição. No interlúdio de uma aurora à outra mora minha função. Levanto os braços e imediatamente todos atendem ao meu comando. Estacionamos na área da cognição. O ar, congelante e rarefeito, produz agonia e medo; sob a terra gelada que agora pisamos muitos se desesperam; uma onda de clarividência varre suas mentes e finalmente descobrem as verdades; há choro compulsivo e ranger de dentes. Os mais velhos gritam por seus entes amados; os jovens, em profunda revolta, se debatem estirados ao chão; crianças e bebês são largados à sua própria sorte. Ficamos ali por muito tempo; não saberia precisar. Tanto que agora sim, o cansaço, também diferente do normalmente sentido, baixou sobre seus olhos e tiveram um adormecimento brusco, daqueles parecidos com a anestesia geral. Ao despertarem, estavam se sentindo diferentes; talvez resignados; quem sabe entorpecidos. Ordeno que se levantem sem abrir os olhos, não precisariam mais deles, e colocamo-nos em marcha, autômatos. Era a ordem. De repente o ambiente ficou etéreo, incompreensível; o tempo indistinguível do espaço. – Vamos, não precisam temer. Um pouco mais adiante paramos, mediante nova ordem mental. Ordeno que enxerguem com a mente. Vislumbraram a outra dimensão. Deixamos pra trás as planícies, os vales e o céu, de que cor fosse. Não mais o deserto abrasador, nem as cidades caóticas; nem mesmo as águas mansas ou os oceanos revoltosos. De agora em diante eu não seria mais prescindível. Já podiam escutar o som das coisas se fundindo; decerto não podiam vê-las concretamente. Eram estrondos surdos, trinados metálicos e vapores em ebulição. Não apareceu ninguém para apaziguá-los ou para dizer-lhes coisas solenes. Não precisava; o entendimento maior veio sem este socorro; o juízo agora era claríssimo. Estavam libertos do peso dos pecados; inútil terem se agarrado aos bens materiais, que se podem ser dados podem ser tomados; ou aos prazeres que entorpecem. Entenderam como é agradável se livrar dos desejos e dos vícios; e do amargo arrependimento de se preocuparem tanto com o porvir, esquecendo de se entregar ao presente, que, enfim, é o estado que realmente importa; já que a vida flui do presente para o passado. Na derradeira hora, um último e o mais importante dos entendimentos veio-lhes como um estribilho: somente o tempo dado é o bem que lhes pertence. Tudo é impermanente; ninguém consegue vencer o tempo, nem mesmo a rocha mais dura, do mais profundo núcleo do planeta, resistirá a ele; nem o sol, tampouco, que está aí para saudar os planetas. Tempo, mesmo não existindo do jeito que eles pensam, sendo uma doce ilusão, faz do passado, do presente e do futuro um brinquedinho de criança; ele é e sempre será uma firme e persistente doce ilusão. Tempo, que é o verdadeiro senhor dos destinos, meu guia maior, mãe e filho da natureza, que o inventou, somente para que tudo não acontecesse de uma vez só e tomasse a forma impressa que se desenrola no curso da vida.

Uma gigantesca fila se forma e, um a um, começam a se fundir com os elementos químicos naturais; o que lhes dá uma maravilhosa sensação de paz e gostosura.

Nesta hora da minha lida diária sinto abafamento e melancolia. E, para afastar tamanho desalento, vou cantarolando aquela velha canção… “tempo, tempo mano velho, falta um tanto ainda eu sei, pra você correr macio, como zune um novo sedã” …

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