A queda

Roger Salgado
5 min readJan 9, 2021

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Um homem se joga do último andar do imenso edifício Acaiaca, há décadas e desde sempre a mais alta edificação do centro de Belo Horizonte. No mesmo milésimo de segundo, surpreendentemente, outro homem cai. Este segundo, porém, não pula; sofre um acidente, acometido por um infortúnio da vida, tragicamente subordinado à lei que diz — se algo pode dar errado, dará.

Enquanto cai, o homem do acidente vai dizendo a si, no intuito de acalmar-se, permanecer sereno e equilibrado, como sempre fora: “até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem”. Antes do terceiro “até aqui está tudo bem”, ele percebe ao seu lado o outro homem e lhe pergunta:

— Foi impressão minha ou você pulou?

— Pulei. Estou tentando novamente me despedir desta vida. E você, pulou?

— Não. Estou aqui por um terrível e sinistro acidente. Estou tentando me manter calmo antes do fim inexorável a que estou destinado quando meu corpo se estatelar no concreto. Você disse que já tentou outras vezes…?

— Pulando pela primeira vez. Já tentei cortar os pulsos e me enforcar com corda. Até o envenenamento já tentei, mas tudo que planejei deu errado. Certa vez, deitei-me na linha do trem em uma noite bem escura, mas um ébrio, que idiota!, atirou-se em mim; por um quase nada eu teria sentido o bafo quente da locomotiva, mas o desgraçado impediu meu fim, minha morte tão sofregamente ambicionada.

— Mas por que tamanho desgosto com a vida? A existência é uma dádiva de Deus e não temos arbítrio para eliminá-la.

— Deus está morto e, se algum dia existiu, nunca se lembrou de mim… desculpe-me. Não conheço o senhor e não tenho hábito de falar com estranhos sobre minhas intimidades.

— Peço escusas, mas alguma coisa nos uniu nesta que será nossa última viagem ao encontro da morte. Você me parece familiar e meu anjo-da-guarda bateu com o seu. Qual é o seu nome?

Não houve resposta do homem que pulou. Seu semblante comovido parecia de alguém que havia chorado. Talvez com vergonha de ser visto com os olhos vermelhos pelo seu espelho, virou-se para outro lado, fechou os braços e as pernas para que a queda fosse mais rápida e precisa. “Como assim, dar explicações sobre minha vida para um qualquer que atravessa meu caminho, justamente na hora em que progrido para o fim de todas as minhas angústias?” Que inferno! Toda hora, um estorvo”.

— Tudo bem, não quer falar, não fale. Esta deve ter sido mesmo sua atitude a vida toda; adiar, fugir dos problemas e não os enfrentar de peito aberto como eu, por exemplo, sempre fiz.

O homem que pulou deu de ombros. Daqui a pouco, afinal, os dois estarão arrebentados no chão, com jatos de sangue jorrando pelos orifícios naturais ou pelos buracos que a queda há de fazer.

Um transeunte parou, botou a mão em pala diante dos olhos, protegendo a vista contra o sol que chapeava o edifício, aparentemente com intenção primitiva de apreciar funesta cena. Logo, formou-se um ajuntamento de pessoas vivas e curiosas a repetir o gesto. É exatamente a hora noa e a tarde entra em sua derradeira metade mais triste, quando as gentes, as aves e o sol vão se preparando para o retorno ao lar, aos ninhos, ao outro lado do mundo.

Quase no fim da queda, o homem do acidente bate na cara de pedra de um dos índios que adornam a majestosa construção. Com o impacto, seu corpo é arremessado violentamente ao encontro do homem que pulou, entrelaçando-os. A audiência, em uníssono, profere: “Hoooooh, meu Deus!”

— Peço desculpas novamente. Não era mais minha intenção importuná-lo e nem chegar tão próximo a você. Acho que quebrei minha coluna, estou sentindo uma dor terrível nas costas.

— De fato, você bateu com as costas no nariz do índio; mas isto não há de ser nada. Um pouco de descanso e pronto! Estará preparado para outra.

— Como pronto para outra? Não percebe que logo adentraremos os portões do céu e seremos recebidos pelo guardião e suas chaves gigantes?

— Você acredita mesmo que existe outra vida, além desta, não é?

— Com certeza. Senão, não haveria sentido em existir. Para onde estamos indo, a outra dimensão, não existem dores e haveremos de ser mais felizes. Devemos ter cuidado com a tristeza, ela é um vício.

Agora, o homem que pulou já sente uma certa ledice para com o estranho. Estando cara a cara, pôde ver em seus olhos uma sinceridade pueril, mas sentiu-se desconfortável com aquele homem ligado ao seu corpo exalando um hálito cetônico. Tentando desvencilhar-se, responde inesperadamente:

— Você também me é familiar. Confesso que, para mim, esta possibilidade de outra existência é particularmente desastrosa; a não ser que não lembremos absolutamente nada desta. Não quero, sinceramente, ter que revisitar minhas mazelas.

— Não pode ser uma decisão sua; o que há de ser, será. Sempre foi assim, desde os primórdios. Não se preocupe.

— Acho você presunçoso e arrogante, se fazendo passar por grande pensador, que sabe tudo e pode aconselhar a todos. Você, por acaso, é filósofo? Padre? Um acólito? Alguém que também se meteu em meu caminho para me salvar? Saiba que agora não haverá jeito; por mais que você tente me persuadir, não vou buscar nenhuma forma de reverter minha queda rumo ao fim.

— Nada disto, sou também um pobre diabo; porém um pouco mais conformado com as vicissitudes da vida. E, quanto ao seu fim, de fato, nada poderemos fazer; mas acredito firmemente que não estamos aqui nesta queda, juntos, por acaso.

No passeio público e no hall do edifício, o movimento se intensifica. Viaturas do resgate já se posicionaram; os paramédicos fizeram considerações sobre os primeiros afazeres e posicionaram o hospital de pronto-socorro João XXIII, que é referência estadual para este tipo de ocorrência. Um carro da televisão arma suas antenas para as primeiras e exclusivas transmissões para o popularesco programa da tarde; cinegrafistas tomam os velocíssimos elevadores até o terraço a fim de captar a melhor cena; a imprensa escrita também se faz presente. Há uma excitação no ar.

— Não quer pensar melhor e desabafar um pouco antes do fim? Essa pode ser mesmo sua última chance — perguntou o homem do acidente numa derradeira e decisiva tacada.

— Mesmo que eu quisesse, agora não haveria tempo. Não vê que já estamos quase chegando? E, além do mais, minha história é muito ordinária, desprezível mesmo, sabe? Tudo que fiz foi merda!

Neste momento, ouve-se o baque em uma espécie de cama elástica, forrada de material impactante, cuidadosamente isolada pelo sempre eficiente Corpo de Bombeiros do Estado de Minas Gerais. Com o passar do corpo, os pombos que estavam na marquise foram-se em revoada; carros passam apressados; os sinos da igreja de São José, do outro lado da avenida, dão três badaladas. O homem se levanta, ajeita a roupa e vai tomar café no Café Nice.

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Roger Salgado
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